quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ruanda e suas Mil Colinas

A viagem de 12 horas em um ônibus nos levou até a fronteira entre Uganda e Ruanda. Confesso que, apesar das horas aguardando a fila e a checkagem das malas em busca de sacolas plásticas (sim, impressionantemente, sacolas plásticas são proíbidas em Ruanda), fiquei bastante emocionada com meus primeiros passos em território ruandês, rodeada de névoa, frio e aquele silêncio ensurdecedor que eu temia encontrar por aquelas bandas.
Desculpa, mas é impossível ignorar o nó na garganta que te acompanha e não procurar o genocídio em todos os cantos daquele pequeno território. Nas ruas, pessoas, memórias, na sua cabeça... Foi chocante quando vi aqueles rostos pela primeira vez, e foi também a primeira vez que me dei conta de que TODOS, todos ali são vítimas ou assassinos. Além disso, considerando que a grande maioria seja hutu (4 pra 1), concluo que boa parte colaborou de alguma forma para o massacre, já que os hutus moderados, aqueles que não ajudaram no extermínio dos tutsis ou, 'pior', que ajudaram os "baratas" a se salvarem, eram poucos, e muitos foram assassinados. Ainda assim, talvez por vergonha ou medo, todos, TODOS, que conheci se disseram tutsi.
Queria conhecer Ruanda sem estar carregada de 'achismos', 'concluísmos', pré-conceitos, mas é difícil pra uma pessoa que dedicou seu TCC e seus últimos 12 meses (é claro que não inclui finais-de-semanas e feriados. Pensando bem, mal inclui os dias da semana), à análise do genocídio.
Apesar de toda essa estudo, não sabia o que esperar. E não poderia saber, pois Ruanda é completamente diferente do que eu poderia imaginar. Completamente diferente da nossa percepção dos países africanos. Sabe aquela imagem que o mundo estigmatizou sobre a África? Aquela sobre ver a África como um único país, uma única cultura, mesmos problemas econômicos, sociais e políticos? crianças famintas e barrigudinhas vagando pelo sol escaldante? Então, eu mzungo ocidental, ainda luto contra essas imagens.
Estou muito impressionada com a política e postura de Kagame e de seu governo pós-genocídio. Não imagino o Brasil sendo capaz de reverter uma situação daquela apenas 17 anos.
Não que o presidente ruandês seja um grande herói como é visto em Ruanda, reconheço e estudei bastante seus defeitos. Se trata de mais uma "democracia" africana, um presidente que se apoia no populismo e nos seus feitos durante o genocídio pra ditatoriar e cometer seus crimes. Não apenas crimes contra a vida, mas contra a liberdade de expressão, autoritarismo, caça política e etc.
Mas Ruanda é extremamente limpa, organizada e cheia de respeitadas leis. Os motoristas respeitam a sua travessia (ah. Em Ruanda os bodas-bodas têm que usar capacete e não é permitido mais duas pessoas na moto. Nada de quatro pessoas e mais alguns frangos vivos como em Uganda), a comida de rua é proibida, ninguém pisa na grama... Além disso fiquei admirada com a população local. Eles não mentem, exploram ou tiram vantagens dos mzungos como aqui em Uganda ou Rj (mal ae cariocada, mas sabe como é né, paulista, malandragem carioca...). Parecem pessoas extremamente calmas e é difícil encontrar a loucura que é as ruas de Kampala. Mas confesso que senti falta da vivacidade ugandense: as luzes, os bares, as pessoas, a música, as comidas, os boda-bodas...
A comunicação foi um problema. Kagame está conseguindo anular o francês em velocidade surpreendente, mas o inglês é precário. Creio que a medida do presidente seja por dois principais motivos: anular as influências da colonização belga e suas lembranças, que naturalmente remetem ao genocídio, e expressão da delicada relação entre Ruanda e a França, que teve participação ativa no genocídio de 1994.
Procurei pelo genocídio em todas as partes, inclusive dentro de mim. Mas foi difícil, muito difícil.
As pessoas estão traumatizadas, machucadas, temerosas, envergonhadas... Ninguém quer falar sobre isso e quando tive conversas sobre, esperei que a conversa viesse à tona à partir deles.
Todos querem esquecer, deixar pra trás. Se autoproclamar ruandês e esquecer as identidades passadas.
Ainda assim, a posição do governo em relação a isso é mais uma política admirável. Propagandiar, informar, conversar sobre o genocídio massivamente como a principal forma de combater um revanchismo ou outro genocídio. Conciliar a população e assumir as rédeas de seu próprio futuro.
Uma semana antes de ir pra Ruanda o país teve sua anual semana do genocídio, dedicada a eventos em homenagem aos mortos no massacre, aos sobreviventes e às celebrações de uma nação unida.
AH! O tal do Memorial. Passamos cinco horas por lá. Cinco horas extremamente emocionantes, chocantes e que culminaram não só em uma série de lágrimas mas em uma série de perguntas sobre até onde a crueldade da raça humana é capaz de chegar. Como estudante dos diversos motivos que levaram ao genocídio de 1 milhão de pessoas em 100 dias, tenho várias respostas prontas para explicar todo o evento. Mas elas nunca serão suficientes pra me fazer compreender como alguém é capaz de pegar no seu facão inferrujado usado para desecascar cana-de-açucar e sair à busca de seus amigos e vizinhos, pronto para cortar-lhes a cabeça, torturá-los, estuprar suas mulheres... Sempre em busca da maneira mais cruel e dolorida possível.
O Memorial é composto, basicamente, de 3 partes. A primeira é sobre o genocídio em si, a segunda sobre grandes genocídios internacionais como o Holocausto e o Armênio, e a terceira e última parte é dedicada às crianças mortas cruelmente em 1994. Fotos de sorridentes anjinhos e suas histórias espalhadas por todo o salão. Ah. Tem a parte dos crânios também.
É tudo super moderno e interativo. Muito, muito bom. Mas a melhor parte é que a principal língua usada no memorial é o kinyarwanda e a entrada é gratuíta. O que significa que a intensão não é fazer desse terrível episódio algo turístico, mas sim informar a população, uni-la, evitar que os mesmos erros sejam cometidos, evitar que a mídia e milícias sejam capazes de coagir a população novamente...
Uma questão cheia de polêmicas dentre os principais autores e especilistas no Genocídio ruandês é sobre a diferença física entre hutus e tutsis. Alguns deles afirmam que os tutsis possuem diferenças como narizes e lábios mais finos, mais altos e esguios e etc. Características mais "brancóides", segundo os colonizadores belgas e exploradores europeus da época. Outros afirmam que essa diferenciação é falsa e se trata apenas de rastro deixado pelo colonizadores. Quando os dois povos se encontraram pela primeira vez no território Ruanda-Burundi eram, sim, diferentes físico e culturalmente. Mas, com os milhares de anos que se seguiram, os dois grupos étinicos se miscigenaram e passaram a compartilhar a mesma língua, cultura e características físicas, ainda que, hierarquicamente, apesar de minoria, os tutsis ocupavam melhores cargos na sociedade, pois se tratava de um grupo, tradicionalmente, pecuário, enquanto os hutus eram agricultores.
Acredito na segunda teoria, especialmente após minha semana em Ruanda. Pelo que pude observar, não há diferenças físicas. Os ruandeses são sim mais esguios, altos e possuem narizes mais finos e menores. Mas isso me pareceu algo geral, ainda que alguns tutsis que conheci tenham afirmado que essas diferenças são claras e reais. Um deles, inclusive, demonstrou ódio pelos hutus e nos exautou por sermos tutsis, já que possuímos narizes finos. Creio ter tido o azar de conhecer uma excessão ao povo ruandês.
O futuro? Ah, no momento só consigo ver um próspero e desenvolvido futuro pra Uganda. Um país MUITO verde, cheio de maravilhosas paisagens, parques nacionais, biodiversividade, cheio de investimento internacional... Uma população muito sorridente, solícita, amiga, pronta para deixar 1994 e todo o ódio no passado. Um povo ansioso pelo futuro ruandês e não mais o futuro tutsi e hutu.
A população, tutsi e hutu, está com medo da saída de Kagame. Seu mandato está terminando e muitos políticos vingativos estão aguardando sua vez.
Ou mesmo que sejam bons políticos, na dúvida, é melhor não arriscar, afinal, em Ruanda, não podemos confiar nem nossos vizinhos.

Sem mais, seguem algumas fotos da incrível semana (e cara, pois Ruanda possuí outra grande diferença de Uganda: seus preços, que são cerca de 4 vezes maiores!!).


Uma das vítimas do genocídio de 1994 homenageado no Memorial em Kigali.



~

Sabe Hotel Ruanda? Então...


Poses ecêntricas. Consegui a atenção deles por um minuto antes me ignorarem e voltarem pra partida de futebol.


Kigali. Limpo, moderno, organizado... Mas as favelas estão subindo as mil colinas...











Guma - Congo.


Adeus Ruanda!!!!

Um comentário:

Guilherme Cicerone disse...

Caramba, Bá, que post animal! Fico pensando na concretização daquilo que estudamos durante um certo tempo e olha aí.
Se intensidade e sensibilidade são sempre presentes em cada parágrafo... Penso como deva ser no teu coração e em teus pensamentos.
E essas fotos são todas suas? São muito boas!

Beijo grande!